Pandemia piora as condições de trabalho na economia informal do cuidado no Brasil

Publicado no dia 26 de outubro de 2020

Consideradas trabalhadoras essenciais durante a emergência de saúde pública da Covid-19 no Brasil, as cuidadoras contratadas para ajudar os idosos estão enfrentando cortes de salários, jornadas mais longas e quarentena compulsória.

Em março, o local de trabalho de Rosália Alves tornou-se sua casa de fato. O filho e a filha de um casal de 80 e 90 anos que morava no Tocantins precisavam de uma cuidadora e Alves estava procurando clientes.

Com o aumento dos casos de coronavírus, eles propuseram a Alves que ela ficasse na casa dos pais com pouca ou nenhuma conexão com o exterior para reduzir o risco de infecção. Por necessidade e senso de dever, Alves aceitou o trato. “Hoje em dia, tudo o que vem em nosso caminho é uma coisa boa”, diz ela.

Alves, de 56 anos, é cuidadora desde os vinte e poucos anos e está acostumada com os longos turnos e o trabalho árduo que vem com o atendimento aos idosos, uma “vocação” pela qual ela é profundamente apaixonada. Mas em todos aqueles anos ela nunca teve que permanecer em uma residência por mais de uma semana sem interrupção – até que o Covid-19 apareceu. Durante 90 dias seguidos, Alves fez o trabalho outrora executado por três empregadas diferentes. A família demitiu duas funcionárias quando ocorreu o surto de coronavírus.

Relatos de trabalhadoras domésticas sobre condições precárias de trabalho, cortes arbitrários de salários, dispensas e até quarentena compulsória se espalharam por todo o país nos últimos oito meses. Embora seja difícil quantificá-lo, dirigentes sindicais e advogados trabalhistas em defesa dos direitos dos trabalhadores relatam, de forma anedótica, um aumento nas reclamações sobre jornadas de trabalho mais longas e situações análogas a um falso encarceramento. Cuidadoras como Alves, em sua maioria mulheres negras, trabalham em casas de famílias de classe média alta e geralmente moram na periferia das cidades e em favelas. Há muito tempo estão entre os mais vulneráveis, mas agora enfrentam uma escolha impossível entre situações de exploração e arriscar seus meios de sobrevivência ao ficarem desempregadas.

“A condição é pegar ou largar”, diz Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD). “Aquelas que pensam duas vezes geralmente se submetem.”

O homem de quem Alves cuidava no Tocantins exigia mais atenção: tinha que tirá-lo da cama, colocá-lo na cadeira de rodas, dar banho, trocar a fralda e a roupa dele, colocá-lo de volta na cadeira de rodas, dar café da manhã e aproximá-lo das janelas para tomar um banho de sol. Quando ela termina, é apenas a hora do almoço. Para além das tarefas habituais de cuidadora, Alves também cozinhava e limpava a casa. Ela recebia pouco menos de 400 dólares por mês (menos R$ 2.200), uma fração do que seus empregadores destinavam aos mesmos serviços antes da pandemia.

Alves diz que não teve nenhum dia de folga, nem foi compensada pelos 12 fins de semana que passou trabalhando. Suas tentativas de negociar uma remuneração mais alta caíram em ouvidos surdos. Durante três meses, as interações de Alves limitaram-se ao casal e ao motorista da família, que a levava para dar uma olhada na sua própria casa a cada oito dias por cerca de duas horas, para que ela volte em seguida a cuidar dos entes queridos de outra família em tempo integral.

“Eu os tratei como se fossem meus próprios pais”, diz Alves. “Mas quando a família me pediu para ficar mais um mês, eu disse que não podia mais fazer isso. Era demais.”

Cuidadoras fazem parte de uma força de trabalho em rápido crescimento no Brasil, numa economia do cuidado predominantemente informal. Como a população idosa do país continua em uma trajetória ascendente para ultrapassar o número de crianças e adolescentes na próxima década, é provável que mais idosos precisem de assistência para as necessidades diárias. A pandemia apenas ressaltou essa demanda.

Ainda assim, seu trabalho muitas vezes se torna invisível. Cuidadoras de idosos e pessoas com deficiência não foram oficialmente consideradas essenciais durante o período de emergência de saúde pública anterior a julho. Com as medidas de bloqueio que restringem o trânsito, muitas cuidadoras sem carteira assinada para comprovar seu emprego como trabalhadoras essenciais lutavam para ter acesso ao transporte público e precisavam de uma declaração especial para conseguir trabalhar em cidades como o Rio de Janeiro. Elas também enfrentaram desafios adicionais para se tornarem uma prioridade para os testes da Covid-19. Outros ainda foram demitidas sem acesso a pagamento ou benefícios devido à possibilidade de adoecer e expor seus empregadores ao coronavírus.

Foi o caso de Mariana de Oliveira Alvarince, que foi dispensada por seu patrão por 20 dias após espirrar por causa de uma alergia. Com uma renda baseada nas horas trabalhadas, ela gastou todas as suas economias para sobreviver.

“É como uma bola de neve: se você trabalhar, você ganha. Se ficar doente e não puder aparecer, não vai”, diz ela.

Outra cuidadora, Vanda Matos Costa perdeu um emprego que tinha há três anos, após se recusar a trabalhar em turnos por dois meses sem folga. “Eu contava com esse dinheiro toda semana e de repente eles me ligaram dizendo que eu não precisava mais aparecer”, diz Costa. Desde então, ela teve que depender nas prestações de cerca de 110 dólares (R$ 600) da ajuda financeira emergencial do governo federal para trabalhadores informais. “É minha única fonte de renda agora.”

O Brasil possui um dos maiores contingentes de trabalhadoras domésticas do mundo, com mais de seis milhões de pessoas. Entre 2013 e 2015, após anos de organização trabalhista, conquistaram os mesmos direitos dos demais trabalhadores, como jornada máxima de oito horas e 44 horas semanais, salário mínimo, intervalo para almoço e acesso à previdência social. A legislação existente, no entanto, não se traduziu na regularização da maioria dos trabalhadores domésticos e, em 2018, menos de 30 por cento tinham estabelecido relações de trabalho formais. Para piorar a situação, essa força de trabalho perdeu mais de 1,2 milhão de empregos desde o início da pandemia.

“Como os empregadores muitas vezes não cadastram essas profissionais, elas acabam tendo seus direitos usurpados”, diz o advogado trabalhista Jales Soares da Silva. “Essa pseudo-cultura de que as trabalhadoras domésticas não deveriam ter carteira assinada continua prevalecendo”.

Essa informalidade persistente contribui para desencorajar as trabalhadoras domésticas de relatar violações já difíceis de investigar cometidas por empregadores como atores privados dentro de suas casas. Para as cuidadoras, uma categoria híbrida que muitas vezes varia de enfermeiras protegidas por um conselho federal até aquelas que apenas caem sob a égide do trabalho doméstico, pode ser ainda mais difícil traçar a linha entre acordos aceitáveis e exploradores.

“Essa pessoa se torna absolutamente vulnerável”, diz Márcia Soares, advogada e diretora executiva da Themis, organização que trata da discriminação contra as mulheres no sistema jurídico que recentemente lançou uma campanha pelos direitos das trabalhadoras domésticas durante a pandemia. “É uma anomalia porque elas fazem um determinado trabalho e muitas vezes passam por um treinamento específico e seu trabalho deve ser reconhecido como o de cuidadores”.

Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro vetou um projeto de lei que visa formalizar a ocupação de cuidadores e estabelecer atribuições e requisitos, inclusive concluir o ensino fundamental e fazer curso de qualificação. Bolsonaro, que como deputado votou contra a emenda constitucional sobre o trabalho doméstico, argumentou que a legislação restringiria a liberdade do exercício profissional. Mesmo que o projeto de lei não tenha obtido apoio unânime, a maioria dos brasileiros parece aprovar uma lei para regularizasse as cuidadoras, algo que segundo os apoiadores também poderia ajudar a fortalecer sua capacidade de se organizar como trabalhadoras.

Por causa do distanciamento social, muitas dirigentes sindicais e presidentes de associações locais tiveram que fechar seus escritórios e transferir suas reuniões, treinamentos e sessões de informação sobre previdência social, direitos trabalhistas e segurança no local de trabalho online. Milhares de cuidadoras estão compartilhando as melhores práticas e repassando recomendações para potencial clientes em grupos do WhatsApp e do Facebook. Essas redes de solidariedade também servem como uma tábua de salvação para as trabalhadoras que lidam com o desgaste emocional de ter que alugar um quarto de hotel por semanas para evitar infectar membros da família ou ficar tão sobrecarregadas e estressadas ​​a ponto de sofrer queda de cabelo.

“Os impactos da pandemia na saúde física e mental das cuidadoras não devem ser subestimados”, diz Daniel Groisman, professor e pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente, ele coordena a primeira pesquisa nacional sobre as condições de saúde e trabalho de cuidadores tanto familiares como remunerados durante a pandemia. As descobertas iniciais do primeiro mês de pesquisa, baseadas em informações fornecidas por quase 3.000 cuidadores, mostram que 41% dos trabalhadores remunerados viram sua renda cair e pelo menos um terço deles relatou se sentir triste ou deprimido muitas vezes.

“Não é possível promover um bom atendimento sem cuidar também de quem cuida”, disse Groisman. “O Brasil tem um regime de cuidado marcadamente familiar”, diz ele, no qual o Estado assume responsabilidades limitadas e sobrecarrega os indivíduos. Isso se baseia na noção de que cuidar é uma expressão da natureza feminina, reforçando os estereótipos de papéis de gênero que exploram o trabalho não remunerado das mulheres.

Entre as nações latino-americanas, o Uruguai se destaca por implementar políticas públicas nacionais destinadas a promover o direito de cuidar dos mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que reconhece e questiona as formas como o preconceito de gênero perpetua a desigualdade na distribuição dessa mão de obra. Até o momento, no Brasil, os projetos de lei que promovem políticas de saúde em geral não conseguiram ganhar força, apesar da necessidade cada vez maior deles. Os efeitos duradouros de uma pandemia descontrolada e recessão econômica provavelmente exacerbarão a crise da economia do cuidado, mergulhando trabalhadoras domésticas como Alves em uma maior informalidade e desemprego.

Alves está sempre em busca de trabalho. “Sempre que me chamam, estou pronta”, diz ela. “Tenho 56 anos, mas dou conta do trabalho. Cuidar do idoso é uma coisa delicada, é preciso ter amor, paciência, humildade e saúde. Mas também é pesado, então você tem que se dedicar a ele”. Alves voltou a receber propostas para cuidar de idosos por longos períodos, mas agora está determinada a negociar melhores acordos para si mesma, seja isso uma remuneração maior ou um contrato formal.

“Mesmo sem um conhecimento maior, temos consciência do que está acontecendo, do que estamos perdendo”, afirma.

Fonte: Nacla.org

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