Confira a entrevista de Luiza Batista sobre “Trabalhadoras domésticas na pandemia e a atuação da FENATRAD”

Publicado no dia 15 de abril de 2021

Confira a entrevista da presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Luiza Batista, sobre o tema “Trabalhadoras domésticas na pandemia e a atuação da FENATRAD”, concedida a Regina Stela Corrêa Vieira, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNOESC e a Bruna Angotti, professora de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-USP).

Luiza Batista, presidenta da FENATRAD

Bruna: A FENATRAD representa as trabalhadoras domésticas de todo o Brasil. Qual a realidade dessas trabalhadoras na pandemia?

Luiza: Para as trabalhadoras domésticas está sendo muito difícil. Isso fica claro pelo fato de que o primeiro óbito pela Covid-19 no país, ocorrido no Rio de Janeiro, foi exatamente de uma trabalhadora doméstica, que os patrões estavam na Itália e voltaram contaminados. Eles puderam se cuidar e a trabalhadora doméstica infelizmente faleceu.

Regina: A FENATRAD lançou uma campanha para garantir renda para as trabalhadoras domésticas durante a quarentena. Esse período da pandemia trouxe insegurança e pressão para as trabalhadoras que são formalizadase e, ainda mais, para aquelas que são diaristas, que não são registradas. Conte-nos sobre a campanha.

Luiza: Logo no inicio da quarentena a gente lançou a campanha “Cuida de quem te cuida”[1], para que empregadores deixem as trabalhadoras domésticas em casa, com salário pago, para se protegerem da contaminação do vírus. A campanha teve uma boa repercussão nas redes sociais, porém a gente sabe que, na prática, poucos empregadores, poucas empregadoras, aderiram a essa campanha.

Além disso, também tem a questão da Medida Provisória 936/2020, que o governo aprovou logo no incio da pandemia, permitindo a suspensão ou redução de horas dos contratos de trabalho, com pagamento de salários proporcionais. As trabalhadoras domésticas também estavam inseridas nessa medida, só que a escolha deve ser do empregador, ou seja, é o empregador que tem que optar por afastar a trabalhadora ou reduzir sua jornada. Apesar de valer para o trabalho doméstico, ela só abarange aquelas trabalhadoras que trabalham com a carteira assinada, o que é uma minoria. Temos o direito à carteira assinada há 48 anos, mas a maioria das trabalhadoras domésticas continua na informalidade, os empregadores não respeitam esse direito.  Sem carteira assinada, a trabalhadora não pode ser contemplada pela medida do governo.

Para piorar, tem empregador que está dizendo para a trabalhadora que se ela não quiser ficar direto na casa em que trabalha, para não estar no transporte público, então ela pode pedir demissão ou será demitida, porque eles não aceitam que elas se exponham ao vírus, mas também não querem pagar o salário da trabalhadora pra ela ficar em casa, o que é um absurdo. A trabalhadora não tem culpa do que está acontecendo e isso não é uma coisa que a FENATRAD entenda como aceitável, porque a gente está vivendo um momento em que se cada um procurar fazer sua parte, claro que essa quarentena vai ter um período menor, vai durar um período menor. Mas é aquela história, a ideia de que “se eu pago, então eu posso tudo”.

Bruna: Em 2020, alguns estados brasileiros decretaram lockdown e consideraram o serviço doméstico como essencial, ou seja, como atividade que não poderia ser interrompida. No Pará, por exemplo, foi autorizado que as trabalhadoras domésticas continuassem trabalhando durante essa fase mais rígida de distanciamento. Como a FENATRAD tem se posicionado com relação a isso?

Luiza: Com relação aos decretos de lockdown, cada governador está assinando de acordo com as suas necessidades. No Pará houve essa autorizaçao do trabalho doméstico e a FENATRAD mandou ofício pedindo esclarecimentos sobre a medida.  Diante do nosso pedido, foi refeita a redação, especificando quais as funções dentro do trabalho doméstico que seriam necessárias. Ficou o trabalho das babás e das cuidadoras de idosos ou de pessoas com necessidades especiais cujo o empregador estivesse exercendo outras funções essenciais, ou seja, quando o empregador seja trabalhador da área da saúde, segurança. Essas pessoas a FENATRAD entende que precisam sim de uma trabalhadora para ficar com crianças pequenas e pessoas idosas, então nossa atuação ajudou a mudar essa redação.

Outros estados também tiveram medidas parecidas, como o Maranhão. Teve também no Rio Grande do Sul, um decreto confuso em que o estado foi dividido em cores como se fosse uma UPA, onde tem a sala verde, vermelha.  Também para o Ceará também foi enviado um oficio. Ou seja, é uma luta diária. O único governador que deixou o trabalho doméstico fora dos serviços essenciais foi o de Pernambuco. Então a gente está vivendo um momento bem complicado, porque cada governador está decretando do seu jeito, de acordo com a necessidade do seu estado, e a FENATRAD está atenta a qualquer decreto para poder pedir uma adequação para as necessidades da categoria.

A gente entende o seguinte: uma babá, uma cuidadora de idosos ou de uma pessoa com deficiência, cujo o empregador esteja em uma função essencial e precise trabalhar fora de casa, dá para entender a necessidade do trabalho continuar; mas não sendo assim, não faz sentido expor a vida da trabalhadora doméstica no transporte público ou exigir que essa trabalhadora deixe de estar cuidando da família para ficar o tempo todo dentro do local de trabalho. Temos dificuldade de fazer nossa posição prevalecer, mas estamos buscando solução ou pelo menos tentando negociar a melhor forma, para não prejudicar a categoria.

Regina: Os decretos de lockdown dos estados, tal como grande parte da legislação trabalhista no país referente ao trabalho doméstico, mostram que muitas vezes os legisladores pensam com a cabeça de empregadores domésticos, mas não pensam nas trabalhadoras. E fica a contradição: se o serviço doméstico é essencial, então porque a gente paga tão pouco por ele?

Luiza: A gente sempre lutou por valorização e reconhecimento do trabalho doméstico, mas a sociedade nunca quis reconhecer esse valor. Agora, no momento da pandemia que a gente está vivendo, a “casa grande” não quer abrir mão da servidão do trabalho do trabalho doméstico e começa a valorizar, porque não quer abrir mão do conforto de ter uma pessoa dentro de casa lhe servindo. É por aí que você tira a importância do trabalho doméstico, porque se não tivesse importância, com certeza os empregadores diriam “então tá, ela vai ficar em casa”.

O governo permitiu o afastamento e suspensão dos contratos de trabalho, mas muitas trabalhadoras não têm esse direito porque a carteira não está assinada. E aí o que o empregador faz? Se aproveita da situação, pois sabe que a maioria das trabalhadoras domésticas são a renda de família, e usa do poder econômico para chegar e dizer que ela vai ter que ficar na casa onde trabalha, você não poderá voltar para sua própria casa todos os dias por conta do vírus.

Então a gente fica pensando como é que a gente pode fiscalizar isso, porque a Constituição de 1988 é bem clara, a gente não pode fiscalizar um domicílio, que é o local de trabalho de uma trabalhadora doméstica. É diferente de uma empresa, em que o trabalhador ou o parente do trabalhador faz uma denúncia e o sindicato pode ir averiguar essa denúncia. No caso do trabalho doméstico não, porque a gente não pode ir até a casa do empregador, a gente não pode chegar e se apresentar “eu sou o sindicato e eu vim aqui verificar uma denúncia”. Então é uma situação muito difícil.

Em momentos como esse a gente vê que o trabalho doméstico, se por um lado está sendo valorizado, porque a “casa grande” entende que precisa da doméstica em casa, isso só acontece porque o empregador acha que limpar um banheiro, lavar uma cozinha, arrumar uma casa, preparar a própria refeição não são coisas para ele fazer. Existe muito a ideia de ”se eu estou pagando então eu quero o serviço feito”. Acontece que aquela pessoa está se tornando um vetor de contaminação para sua própria família e para a família para qual trabalha, mas mesmo assim o empregador não quer abrir mão do conforto. E o que é que faz? Se aproveita do poder econômico para, digamos assim, obrigar a trabalhadora a permanecer no local de trabalho. Infelizmente não temos como fiscalizar isso.

Bruna: O cuidado remunerado no Brasil é feito, na sua grande maioria, por trabalhadoras domesticas. A importância desse trabalho muitas vezes é invisível e uma parte da luta da FENATRAD é de trazer reconhecimento e garantir a igualdade para as trabalhadoras domésticas. Conte mais sobre essa luta.

Luiza: Nós, trabalhadoras domésticas, temos esse trabalho, esse serviço de cuidar, especialmente da casa. Ao cuidar da casa, nós garantimos bem-estar. Uma casa limpa, asseada, organizada, ela propicia bem-estar e saúde. Assim, o trabalho doméstico se torna essencial, porque ele é o trabalho do cuidado. Nós preparamos refeições, e mesmo se a pessoa pedir comida via delivery, o entregador ou o motorista do aplicativo não vai limpar a cozinha, lavar a louça.

O trabalho doméstico é base de organização da sociedade. No Brasil as pessoas aproveitam da situação em que vimemos e, cada dia mais, vemos a ampliação da desigualdade social. Muitas pessoas se aproveitam da realidade das trabalhadoras, de uma mulher que tem filhos para criar e está sem renda nenhuma, e oferecem condições de trabalho ruins. Essa mulher vai ter que escolher: ou ela deixa os filhos com fome, ou ela alimenta seus filhos e, para isso, se submete a trabalhar sem registro na carteira, a ganhar muitas vezes menos do que o salário mínimo. Em regiões como o Norte e o Nordeste é muito raro todos terem a consciência de que tem que pagar o salário mínimo. Tudo isso amplia as desigualdades sociais.

Regina: As trabalhadoras domésticas estão organizadas há muitos anos para fazer suas reivindicações. O Conselho Nacional das Trabalhadoras Domésticas foi criado em 1985, no congresso do Recife, e depois da Constituição de 1988 vocês conseguiram o reconhecimento sindical. Desde então, vocês construíram muita coisa coletivamente. A FENATRAD foi, inclusive, protagonista na elaboração da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho. Conte um pouco mais da história da federação.

Luiza: A FENATRAD foi fundada em 1997, exatamente para agregar todos os sindicatos das trabalhadoras domésticas do Brasil. Agora, a luta da nossa categoria tem mais de 80 anos e os primeiros direitos foram conquistados em 1972, com a Lei 5.859. Já é bom tempo de história, mas infelizmente os direitos não chegam a todas, porque não foi garantido que todas as trabalhadoras fossem registradas, pelas inúmeras questões já mencionadas.

Então a federação foi criada exatamente para fortalecer os sindicatos, agregar força e ampliar a luta. Tanto que na gestão de Creuza Maria de Oliveira como presidenta da FENATRAD (2006-2015), conseguimos levar nossas reivindicações para fora do país e fundamos a CONLACTRAHO – Confederación Latinoamericana y del Caribe de Trabajadoras del Hogar. Aliás, entre as pessoas que estavam nessa fundação estavam grandes figuras como Lenira Carvalho, que fundou o sindicato de Pernambuco, e Nair Jane Castro Lima, do sindicato do Rio de Janeiro.

Além disso, na gestão de Creuza, conseguimos muito apoio político em Brasília, conseguimos o apoio da OIT, da ONU mulheres. Nossa luta foi até Genebra, quando seis dirigentes da FENATRAD participaram da Conferência Internacional do Trabalho, em 2011. Nessa ocasião, o Brasil foi quem levou a maior delegação de trabalhadoras domésticas, de dirigentes de sindicatos de trabalhadoras domésticas – mesmo países como Estados Unidos não conseguiram levar o mesmo número de representantes.

Um fator que ajudou muito nossa luta no período foi o governo federal. Em 2003 assumiu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, com certeza, ele por ser um operário, ele teve um olhar diferenciado para classe trabalhadora e passou a apoiar mais a luta das trabalhadoras domésticas. Em 2006 foi sancionada a Lei 11.324, que estendeu para as trabalhadoras domésticas o direito de ter feriados, ampliou o direito a férias para 30 dias corridos, com remuneração de um salário mais um terço, e garantiu estabilidade da gestante, o que antes não tinha. A mesma lei proibiu o desconto de alimentação e moradia das trabalhadoras domésticas, porque até então os empregadores podiam descontar. Essa mudança foi importante porque, muitas vezes, quando a trabalhadora deixava o emprego e procurava o sindicato para entrar com ação trabalhista, a gente pedia o ressarcimento dos descontos que foram feitos ao longo do período trabalhado, mas o julgamento variava de juiz para juiz, porque alguns entendiam que se não estava na lei, não tinha problema descontar.  

Então, a Lei 11.324/2006 garantiu isso para gente e, depois dela, tivemos uma sucessão de conquistas. Diferente do governo de Fernando Henrique Cardoso, em que o único avanço foi ampliar o direito ao FGTS para as trabalhadoras domésticas, só que como facultativo para o empregador. Posteriormente, no governo da presidenta Dilma Rousseff, nossas representantes foram para Genebra e, na Centésima Conferência Internacional do Trabalho foi aprovada a Convenção 189 da OIT, que possibilitou a ampliação da luta.  Essa foi a construção da FENATRAD para a categoria ao longo desses anos.

Com o golpe de 2016, vieram as retiradas de direitos, inclusive para outras categorias de trabalhadores. A reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) foi boa só para o patrão, só para o empregador, porque para o trabalhador foi um retrocesso. Onde tudo isso vai parar? Não sabemos onde todo esse retrocesso que está acontecendo, todo esse desmonte, toda a ampliação das desigualdades sociais, mas sabemos que nunca ficaremos de braços cruzados, isso jamais. A gente continua, a luta continua.


[1] https://www.cuidadequemtecuida.bonde.org/

Compartilhe esta notícia: