Por Maria Izabel Monteiro Lourenço* e Mary Garcia Castro**
O primeiro caso de óbito pela Covid-19 no Rio de Janeiro foi de uma trabalhadora doméstica diarista, contaminada por sua empregadora que testou positivo pela doença após voltar de uma viagem à Itália. O que levou essa empregadora a não proteger a trabalhadora doméstica, sabendo que esse vírus é de fácil contaminação e pode levar à morte? É difícil responder?
Meu nome é Maria Izabel Monteiro Lourenço, tenho 53 anos, nasci no interior, em Campos dos Goitacazes, no Estado do Rio de Janeiro. Sou professora primária, trabalhadora doméstica, atriz e presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro.
Em 1984, eu vim para o Rio de Janeiro em busca de emprego. Desde então, trabalhei em indústrias e comércio, mas a maior parte de minha vida, fui empregada como trabalhadora doméstica.
Em 2009, entrei para o grupo de teatro “Marias do Brasil”, formado por mulheres trabalhadoras domésticas e atrizes, na base da metodologia de Teatro do Oprimido, criada por Augusto Boal. Através do grupo, conheci o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, e logo me afiliei.
Em 2018, fui eleita presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro.
Desafios e Perfil das trabalhadoras domésticas no Brasil
O Brasil se destaca como o país com um maior número de trabalhadoras domésticas remuneradas, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essas representam o segundo maior grupamento ocupacional de mulheres no Brasil, ficando atrás apenas do comércio. Em 2018, 14,6% das mulheres brasileiras ocupadas concentravam-se em atividades remuneradas no trabalho doméstico, o equivalente a 5,7 milhões de mulheres, estatística que ainda se considera subestimada, já que muitas trabalhadoras domésticas não se declaram como tal.
Vários autores vêm há muito destacando a não-valorização do trabalho doméstico por sua interação com marcadores de classe, gênero e raça, relacionados a processos complexos que estruturam desigualdades e discriminações sociais no Brasil. É tido como “trabalho de mulher”, pois menos de 1% dos trabalhadores domésticos em 2018 seriam homens. Além disso, era e é considerado “trabalho para pobre”, já que mulheres negras escravizadas eram as encarregadas do trabalho doméstico no período da escravidão.
O trabalho doméstico é ainda caracterizado por sua conexão intrínseca com o gênero. Essa relação estrutural se expressa não somente em sua desvalorização social ou banalização como “coisa de mulher”, inscrita na histórica divisão sexual do trabalho, mas também na invisibilidade do seu custo de reprodução, pois as trabalhadoras domésticas exercem duplas jornadas de trabalho, cuidando das famílias empregadoras e das suas próprias.
A vida de trabalhadoras domésticas, desde a época em que as mulheres africanas foram exportadas nos navios chamados negreiros, nunca foi fácil. Eram abusadas sexualmente pelos navegantes. Após serem negociadas em terras brasileiras, os abusos continuavam, perpetrados por comerciantes que as vendiam como mercadorias, e finalmente, pelos seus donos, sujeitando-as a incessante sofrimento e violência.
As mães escravizadas eram obrigadas a se separarem dos seus filhos, para servirem às Casas Grandes, além de se tornarem amas de leite dos filhos dos donos de engenho. Com o fim da escravidão, essas mulheres, sem oportunidades, permaneceram dentro das casas de famílias privilegiadas, prosseguindo o trabalho doméstico.
No Brasil, a maioria das trabalhadoras domésticas são mulheres negras, de pouca escolaridade e classe social baixa, devido à falta crônica de políticas públicas para esta categoria.
Ser trabalhadora doméstica é estar condenada a todas as formas de preconceitos.
Legislação trabalhista e sua falta de materialização
Estes preconceitos se refletem na legislação trabalhista que, primeiramente, não reconhecia o trabalho doméstico até 1972. Com a Constituição Federal de 1988, um conjunto mínimo de direitos foi concedido aos trabalhadores domésticos, incluindo salário mínimo, repouso semanal remunerado, férias anuais, licença-maternidade e aposentadoria.
Em 2006, a legislação de 1972 foi alterada e os trabalhadores domésticos adquiriram o direito a trinta dias de férias, estabilidade para a gestantes, direitos a feriados civis e religiosos, além da proibição de descontar do salário o custo da moradia, alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados nos locais de trabalho. Ademais, a lei emendada introduziu uma dedução no imposto de renda de 12% para os empregadores e garantiu o valor do salário mínimo mensal. Em outubro de 2015, a Lei Complementar 150 ampliou esses direitos através do estabelecimento de um fundo de garantia por tempo de serviço, a limitação da carga horária de trabalho a 8 horas por dia e 44 horas por semana. Outras vitórias incluíram a remuneração de horas extras, o seguro desemprego, o adicional noturno, o 13° terceiro salário e a exigência do aviso prévio para a demissão.
Apesar dessas garantias, a categoria enfrenta um enorme desafio: a falta de cumprimento das leis trabalhistas. Segundo os sindicatos dos trabalhadores domésticos, as conquistas importantes dos últimos anos não são materializadas, devido ao controle insuficiente por parte do Estado. Em 2020, 70% dos trabalhadores domésticos no Brasil são empregados informalmente.
As trabalhadoras domésticas chegam aos sindicatos com várias reclamações. Muitas só descobrem as irregularidades de suas situações ao serem demitidas. Alguns empregadores assinam apenas a carteira de trabalho, mas não cumprem os demais direitos e muitas vezes, as trabalhadoras não verificam se todos os seus direitos foram devidamente respeitados porque confiam nos seus empregadores, ou estão mal informadas e pensam equivocadamente que a carteira de trabalho assinada basta para garantir a proteção dos seus direitos.
A luta das trabalhadoras domésticas em tempos de Covid-19
No domingo, 15 de março de 2020, na minha casa em Duque de Caxias, eu estava acompanhando as notícias sobre a pandemia de COVID-19. Assim que me atentei da gravidade da situação, convoquei a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro, anunciando que iria gravar um vídeo. Neste, pedi aos empregadores que liberassem as trabalhadoras domésticas mensalistas e diaristas, mas que não deixassem de remunerá-las. Com mais de 150 mil visualizações, o vídeo teve grande repercussão nas redes sociais.
Sabíamos que a Covid-19 estava chegando ao Brasil junto com a população que viaja para o exterior – a principal fonte contaminadora. A maioria dessas pessoas emprega trabalhadoras domésticas e a probabilidade de contaminação é imensa, pois são mais de seis milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil. Ainda por cima, uma vez contaminadas, essas trabalhadoras se tornariam fonte de infecção para suas famílias, vizinhos e comunidades.
As trabalhadoras domésticas tendem a correr um maior risco de desenvolverem um quadro grave da Covid-19, uma vez que a idade média desta categoria está aumentando, dado que as mulheres mais jovens procuram novas possibilidades no mercado de trabalho, graças aos progressos realizados na educação. O elevado risco das trabalhadoras é agravado por outros fatores, como a pobreza e condições de vida inadequadas, ou a necessidade de realizar longos trajetos para o local de trabalho usando transportes públicos, frequentemente precários e superlotados. Além disso, as trabalhadoras domésticas estão em contato direto com os membros das famílias às quais prestam serviços, especialmente com as crianças e idosos de quem cuidam, e são muitas vezes responsáveis pelas compras de alimentos e outros produtos básicos. Na ausência de medidas de distanciamento social nos mercados e feiras, elas estão particularmente expostas a potenciais contágios.
Deve ser notado, contudo, que mesmo antes da pandemia de Covid-19, a informalidade e a precariedade estavam em crescimento, uma vez que as desigualdades sociais históricas do país estão sendo agravadas por um governo que tem continuamente minado as conquistas dos trabalhadores e marginalizado os serviços de saúde pública e de previdência social. Segundo o IBGE, o desemprego no Brasil aumentou em 11,6% no trimestre encerrado em fevereiro, o último antes da pandemia se espalhar pelo país, abarcando 12,3 milhões de desempregados. Ao mesmo tempo, o Brasil registrou 206 bilionários em 2019, com uma fortuna total de R$ 1.205,8 bilhões (17,7% do PIB brasileiro), o que bem demonstra que para além da pobreza, as desigualdades sociais sistêmicas de vários tipos são predominantes no país.
Na primeira semana da crise no Brasil, de 16 a 19 de março, ainda fizemos os serviços internos no Sindicato. Cheguei até a atender um empregador furioso que me perguntou “que lei era essa” que supostamente garantia que a trabalhadora pudesse ficar em casa e ainda sim recebesse. Outra empregadora estava determinada a impor férias antecipadas à sua trabalhadora. Para o primeiro empregador furioso, respondi que estávamos tomando medidas preventivas em tempos de pandemia; e para a segunda respondi que era as férias deveriam ser negociadas de forma que ambas as partes não fossem prejudicadas.
Tenho um grupo de trabalhadoras no WhatsApp. Muitas delas entraram em contato comigo quando souberam do vírus, relatando que seus patrões se recusavam a cumprir a quarentena e as medidas protetivas. Elas também estavam se sentindo inseguras, com medo de serem demitidas.
Uma trabalhadora relatou que seu empregador está com suspeita de contaminação do novo coronavírus e não deixou esta informação esclarecida. Apenas sugeriu que ela ficasse em casa. Sem esclarecimentos, a trabalhadora está, obviamente, com muito medo. Perguntei se ela gostaria de tornar este relato público, mesmo sem revelar os nomes, mas ela respondeu que não teria coragem.
Outra trabalhadora me contatou e perguntou: “Izabel, o que fazer com esses patrões escravocratas que querem nos obrigar a trabalhar? Como se proteger usando um moto táxi para ir ao trabalho?”. Outra só conseguiu negociar férias depois da primeira quinzena de abril. Mesmo assim houve muita resistência por parte dos empregadores.
Ademais, recebi relatos de duas diaristas que continuam a trabalhar, e de uma terceira que o empregador deu folga, mas sem remuneração. É grande a necessidade de as pessoas ganharem dinheiro para o sustento. Os empregadores deveriam cooperar.
Eu, Maria Izabel, sou diarista em uma residência uma vez na semana. A senhora, para quem eu trabalho, ligou para saber como eu estava e se prontificou em depositar os pagamentos de minhas diárias.
Resistência e sindicalização
Estima-se que apenas 18% de todas as trabalhadoras domésticas em 2009 estavam sindicalizadas. Tal baixa taxa de sindicalização se associaria a um conjunto de dificuldades, muitas delas típicas do trabalho doméstico, como o isolamento ou a desvalorização e precarização do trabalho. A situação de desproteção é grave para o conjunto de empregadas domésticas, independentemente de sua cor/raça e região de residência. Contudo, a vulnerabilidade é ainda mais intensa entre certos grupos: 29,3% das trabalhadoras domésticas negras e 24,6% das brancas trabalham sem carteira de trabalho assinada. Muitas trabalham 58 horas semanais, com remuneração média abaixo do salário mínimo estipulado por lei.
Apesar das heranças coloniais e escravocratas do país, e da situação política e econômica adversa, o cenário de subserviência e invisibilidade das “domésticas” vem mudando. Cada vez mais, elas dizem não. As trabalhadoras domésticas estão unidas e organizadas em sindicatos a nível local, em uma federação a nível nacional e uma confederação a nível latino-americano. Embora apenas uma minoria das trabalhadoras domésticas faça parte destas organizações, elas estão prosperando e foram capazes de conquistar vitórias cruciais para a igualdade de direitos. Além disso, suas vozes são ouvidas como representantes reconhecidas da profissão, inclusive na mídia.
Durante a pandemia de Covid-19, as organizações das trabalhadoras domésticas desempenham um papel fundamental na luta por proteção e justiça. Suas ações vão desde a prestação de assistência direta às trabalhadoras, até à demanda de apoio estatal.
O silêncio de muitos empregadores e a falta de compreensão deixam as trabalhadoras inseguras e adoecidas. Umas relatam que receberam folgas, mas criticam a falta de diálogo por parte dos empregadores sobre a remuneração.
Quando nos identificamos como trabalhadoras domésticas, o preconceito é levado conosco. Os olhares mudam, as falas mudam, o tratamento é outro. Diferente se nos apresentarmos como outra profissional.
Para nós, trabalhadoras domésticas, tudo muda. Até mesmo diante de um vírus contaminador que veio da Casa Grande, nos negam proteção. E se fosse o contrário?
Mas a nossa resistência toma muitas formas. O sindicato pressiona o Estado por proteção trabalhista, dialoga com as patroas e patrões, tentando apelar para o sentido de justiça.
Nós estamos ao lado da trabalhadora e encorajamos resistências e, na medida do possível, amparamos com um pouco de ajuda ou, pelo menos, uma palavra amiga.
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Esse artigo foi originalmente publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo sob o título “Domestic Workers and Covid-19 in Brazil” e integra o dossiê “Insights Feministas, Resiliência e Resistência em Tempos de Covid-19: Perspectivas do Sul Global“, editado por Kristina Hinz e Izadora Zubek. Ele é resultado de dois textos combinados sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil durante a pandemia de Covid-19: um testemunho da luta e resistência das trabalhadoras domésticas, de autoria de Maria Izabel Monteiro Lourenço*, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro , e uma apresentação dos principais cenários e desafios enfrentados pela categoria, escrito pela professora e pesquisadora (UFRJ, Flacso-Brasil) Mary Garcia Castro**.
Transcrição de artigo publicado no site da Flacso