A presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (SINDOMÉSTICO/BA), Milca Martins, concedeu uma entrevista ao site francês Le Courrier sobre a situação da categoria após uma década da conquista da PEC das Domésticas, em 2013. Confira na íntegra a reportagem de Gaëlle Scuiller, em colaboração com Guy Zurkinden:
“Os abusos continuam generalizados”
Alguns comentaristas viram o fato como uma “segunda abolição da escravidão”. Em abril de 2013, as trabalhadoras domésticas brasileiras conquistaram a “PEC das Domésticas”, fruto de oitenta anos de luta. Apoiada pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores, PT), essa nova legislação finalmente aplicou as disposições do Código do Trabalho a uma profissão na qual 92% dos trabalhadores são mulheres e 65% deles são negros. O resultado foram ganhos significativos para as mais de seis milhões de funcionárias que trabalham em condições às vezes semelhantes à escravidão: acesso à proteção social, jornada de trabalho máxima limitada a oito horas por dia, pagamento de horas extras – aumentado em 50% -, indenização em caso de demissão, medidas de proteção à higiene e à saúde.
Dez anos depois, o progresso na prática continua insuficiente. A proporção de trabalhadoras domésticas que trabalham no setor informal – 76% delas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – aumentou ainda mais. Quanto à sua renda, que é equivalente ou até inferior ao mínimo legal (1.320 reais em 2023, ou cerca de 228 francos suíços), ainda é muito baixa para viver.
O motivo desta realidade: muitos empregadores se aproveitam de brechas na legislação. Essa é a avaliação amarga de Milca Martins Evangelista, trabalhadora doméstica e presidenta do Sindoméstico, o sindicato que organiza esses funcionários no estado da Bahia, no nordeste do país. Longe de desistir, essa ativista de 54 anos, que acaba de concluir seu último ano de escolaridade obrigatória, está apresentando demandas concretas para garantir que os avanços legais finalmente se materializem na prática.
Qual é a realidade dos trabalhadores domésticos no Brasil hoje?
Milca Martins Evangelista: Intimamente ligado ao passado escravocrata de nosso país, o trabalho doméstico sempre foi um setor extremamente vulnerável. Muitos de nós sofremos violência física e sexual nas mãos de nossos empregadores, muitas vezes quando ainda éramos crianças. Atualmente, esses abusos, as condições de trabalho análogas à escravidão e o trabalho infantil ainda são muito comuns. Essa violência afeta mais as mulheres que moram na casa das famílias e estão à mercê de seus empregadores. A precariedade e a arduidade do trabalho também continuam a afetar seriamente nossa saúde, tanto mental quanto física. Na prática, os direitos consagrados em lei estão longe de ser aplicados a todas as trabalhadoras.
Por que?
Em primeiro lugar, porque os locais de trabalho são residências particulares. Portanto, é difícil controlar a aplicação da lei. Em segundo lugar, porque a legislação contém uma grande lacuna. Às escondidas, os oponentes da “PEC dos trabalhadores domésticos” e sua legislação de implementação, que data de 2015, conseguiram manter um status inferior para os “trabalhadoras diaristas”, ou seja, empregadas que trabalham menos de três dias por semana para o mesmo empregador. Considerados “autônomas”, elas são excluídas do escopo da lei. Desde 2013, um número crescente de empregadores têm se aproveitado dessa brecha para não nos declarar, mantendo-nos em uma situação precária que a pandemia tornou ainda pior.
Como essa situação pode ser melhorada?
O primeiro passo é garantir que a lei seja aplicada e que os empregadores sejam obrigados a declarar suas trabalhadoras domésticas. Isso exigirá mais recursos e controles por parte do Estado. Ao mesmo tempo, o Brasil deve aplicar integralmente a Convenção 189 da ONU: todos os trabalhadores domésticos devem ter a garantia de um contrato e condições de trabalho e emprego decentes.
Os sindicatos também estão exigindo que os Estados concluam acordos coletivos de trabalho para essa categoria, prevendo salários mínimos e escalas distintas para diferentes funções (cozinhar, cuidar dos filhos, cuidar da casa etc.), a fim de recompensar a combinação de tarefas de forma justa. Até o momento, apenas o estado de São Paulo tem um acordo desse tipo.
Outra demanda importante é o acesso a moradias independentes. Quando dormem nas casas de seus empregadores, as trabalhadoras domésticas são prisioneiras de seus empregos, sob pressão constante e mais expostas a agressões. Na Bahia, conseguimos a construção de um conjunto habitacional para trabalhadores domésticas. Composto por quatro prédios residenciais, ele também conta com uma creche. Esse tipo de sucesso deve ser multiplicado. Mas para conseguirmos isso em nosso país racista e patriarcal, temos que continuar lutando!
Quais são suas ferramentas nessa luta?
Os sindicatos nos diversos estados estão organizados dentro da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Na Bahia, o Sindoméstico atua há trinta e três anos, em todas as frentes. Oferecemos um local para que as trabalhadores possam se organizar et lutar, ser acolhidas e receber apoio – jurídico e administrativo, bem comopsicológico e emocional. Também oferecemos treinamento profissional e político – uma forma de contribuir na formação da consciência destas mulheres e fortalecer nosso sindicato.
Como vocês alcançam as trabalhadoras isoladas em casas particulares?
Por meio de um trabalho de base paciente, sempre que possível.
Aos domingos, o único dia livre para essas trabalhadoras, distribuímos nosso boletim informativo nos bairros onde elas moram. Ficamos nos pontos de ônibus para fazer contato com elas e também visitamos escolas, universidades, bares da periferia e igrejas. Durante a semana de 27 de abril, Dia das Trabalhadores Domésticas, organizamos ações em áreas de alto tráfego, como shopping centers populares.
Muitas vezes, as trabalhadoras entram em contato conosco pelo Whatsapp antes de participar de nossas reuniões. Se trata de um trabalho árduo, mas que está dando frutos!
“SE PARARMOS, NADA FUNCIONA”.
Para Milca Martins, garantir os direitos das trabalhadoras domésticas significa mudar fundamentalmente o paradigma que envolve o trabalho de cuidados.
“Nosso trabalho gera imenso valor e lucros para nossos empregadores. As trabalhadoras domésticas realizam uma infinidade de tarefas, permitindo que milhões de mulheres e homens exerçam uma atividade econômica remunerada fora do âmbito familiar”.
No entanto, esse valor é negado diariamente a essas milhões de trabalhadoras. “Nosso trabalho é mal pago e não é reconhecido. Há uma razão para isso: ele é feito pela força de trabalho mais barata do mercado, as mulheres. Estamos lutando para que nosso trabalho seja valorizado e para que finalmente sejamos reconhecidas como membros plenos da classe trabalhadora.”
Para milhares de famílias brasileiras, essa falta de reconhecimento está uma fonte de lucro: “Quando o empregador come um prato feito e servido pela empregada doméstica, ou quando ela faz o papel de enfermeira da mãe ou do filho doente, nossos patrões economizam o salário de outros profissionais mais bem pagos e enriquecem às nossas custas!
Paradoxalmente, esse papel fundamental dá a esses trabalhadores um poder que muitas vezes é ignorado, ressalta a sindicalista: “Se pararmos, nada funcionará: nossos chefes terão de ir para casa para cuidar dos doentes e das crianças”.
Milca e suas companheiras estão pensando seriamente em entrar em greve, apesar das dificuldades: “A maioria das trabalhadoras tem medo de perder seus empregos, mas o processo de conscientização sobre o equilíbrio de poder está em andamento. Elas precisam entender que os patrões precisam de nós tanto quanto nós precisamos de um emprego. GSR
UMA VIOLÊNCIA QUE TEM RAÍZES PROFUNDAS
“Comecei a trabalhar aos 7 anos de idade em uma família composta unicament de pessoas brancas, onde sofri muitos abusos. Um dia, eles cortaram meu cabelo bem curto para não terem de cuidar dele. Para eles, minha aparência não tinha a menor importância.” Contada por Milca Martins, essa anedota ilustra a violência com que muitas empregadas domésticas eram tratadas – e ainda são até hoje. Essa violência está intimamente ligada à herança da escravidão no país.
Sua observação é corroborada pela pesquisadora Carla Conde. “Embora suas origens remontam ao período colonial e à relação ‘senhor-servo’, o trabalho doméstico está lutando para ser considerado um trabalho normal. Ele continua desvalorizado, mal regulamentado e considerado uma atividade não produtiva, realizada principalmente de maneira informal e em situação irregular”, observou ela em 2015. Apesar das conquistas da “PEC das domésticas”, ainda há um longo caminho a percorrer para romper com os maus-tratos históricos de um setor situado na interseção da divisão social, sexual e racista do trabalho – tanto um legado do passado escravagista quanto uma consequência da ideia de que o cuidado é um papel “natural” das mulheres. Felizmente, Milca e suas companheiras estão lutando para isso.
https://lecourrier.ch/2023/12/28/les-abus-restent-tres-repandus/