Matéria do The New York Times relata a extinção, em muitos casos, do “quarto da empregada” no Brasil

“Não há necessidade de essa trabalhadora passar a noite”, diz Luiza Batista

Publicado no dia 16 de agosto

Confira a matéria transcrita do The New York Times:

37 pés quadrados que mostram o passado racista do Brasil

No Brasil, quartos para empregadas domésticas, um vestígio da história da escravidão no país, estão desaparecendo ou sendo transformados à medida que o país enfrenta desigualdades profundamente arraigadas.

Ana Beatriz da Silva ainda se lembra de sua primeira casa: um quartinho atrás da cozinha de um apartamento na beira da praia do Rio de Janeiro, onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica.

O quarto era pouco maior que um armário, quente e sufocante, ela disse, com apenas uma pequena janela para o ar. A Sra. Silva dividiu o espaço apertado com sua mãe e seu irmão mais velho até os 6 anos.

“Nós vivíamos assim — amontoados num cubículo”, disse a Sra. Silva, 49, professora de geografia.

A experiência convenceu a Sra. Silva de que ela nunca poderia ter um quarto de empregada em sua própria casa. Então, quando ela alugou um apartamento antigo em uma área de classe média do Rio, ela rapidamente transformou o quarto de empregada em um escritório.

“O quarto da empregada é nossa herança colonial”, disse a Sra. Silva. “É vergonhoso.”

Muitos brasileiros cada vez mais sentem o mesmo.

Os quartos de empregada são um acessório nos lares brasileiros há gerações, um vestígio de sua longa história de escravidão e um marcador tangível de desigualdade em um país onde, após a abolição, muitas famílias ricas dependiam de empregadas domésticas mal pagas, em sua maioria negras, para limpar, cozinhar e cuidar das crianças. Algumas trabalhavam 24 horas por dia por centavos; outras labutavam apenas em troca de quarto e alimentação.

Mas o Brasil está passando por um acerto de contas com seu legado de escravização de pessoas e como esse passado doloroso moldou tudo, da economia à arquitetura.

O debate se espalhou para o quarto de empregada, que muitos dizem ser uma relíquia racista e classista, sem lugar nos lares modernos.

“A arquitetura só reflete o que a sociedade diz ser normal”, disse Stephanie Ribeiro, arquiteta e designer que estuda o quarto de empregada há mais de uma década. “E, para muitas pessoas, o quarto de empregada não faz mais sentido.”

Diferentemente da geração de seus pais, os mais jovens estão denunciando as desigualdades no Brasil, que tem uma população majoritariamente negra.

O rosto da classe média do país também está mudando, à medida que brasileiros negros e mestiços fazem progressos econômicos, mas rejeitam alguns indicadores de riqueza, como empregadas domésticas.

Uma série de leis trabalhistas — uma semana de trabalho garantida de 44 horas, um salário mínimo padronizado e auxílio-doença — tornaram as empregadas domésticas residentes mais caras, empurrando o que antes era um símbolo de sucesso financeiro para fora do alcance de muitos brasileiros. Como resultado, menos empregadas domésticas vivem nas casas de seus empregadores.

Algumas pessoas dizem que ter um espaço dedicado é útil para as empregadas domésticas guardarem pertences ou fazerem uma pausa para o almoço. Outros argumentam que os quartos fornecem moradia essencial para trabalhadoras domésticas que se mudam para centros urbanos de áreas rurais distantes, ou para aquelas que vivem nas periferias mais pobres da cidade, a horas de distância das casas de seus empregadores.

Mas muitos discordam.

“Não há necessidade de essa trabalhadora passar a noite”, disse Luiza Batista, coordenadora da Federação Nacional das Empregadas Domésticas, um sindicato que representa cerca de 14.000 empregadas domésticas. “Essa pessoa trabalha o dia todo. Ela precisa de um lugar decente para descansar. Ela precisa poder bater o ponto.”

A Sra. Batista, 68, disse que começou a trabalhar como empregada doméstica quando tinha 9 anos e passou décadas limpando, cozinhando e cuidando de famílias ricas. Em uma casa, a Sra. Batista e outro trabalhador dividiam um cômodo cheio de produtos de limpeza, material de construção e um botijão de gás.

“Você passou a noite”, lembrou a Sra. Batista, “inalando produtos de limpeza”.

Os quartos de empregada ainda muitas vezes funcionam como armários de armazenamento, abarrotados de tudo, desde eletrodomésticos quebrados até ferramentas de reposição, ela disse. “Este espaço nunca é apenas um lugar para o trabalhador descansar.”

Os quartos de empregada, é claro, não são exclusivos do Brasil; eles costumam ser construídos em casas de famílias ricas na Ásia, África e Oriente Médio.

Na América Latina, elas desapareceram gradualmente de países como Chile e Argentina, onde as proteções trabalhistas tornaram as empregadas domésticas menos acessíveis. Mas elas persistem em outros lugares, incluindo Colômbia, Bolívia e México, apesar da resistência de ativistas trabalhistas.

Agora, como os brasileiros estão desgostosos com os quartos de empregada, eles estão transformando-os em bibliotecas, salas de estar e closets.

O aumento dos preços dos imóveis nas principais cidades brasileiras significa que mais construtoras estão construindo apartamentos menores, sem dependências de empregadas, e os compradores de imóveis estão mais seletivos sobre como usar sua metragem quadrada cada vez menor.

“A arquitetura brasileira está buscando uma nova identidade”, disse Wesley Lemos, um arquiteto que projetou casas de luxo por todo o Brasil. “Então o quarto de empregada está desaparecendo das plantas.”

A ideia de um quarto de empregada sempre deixou Diogo Acosta desconfortável. A empregada que trabalhava para sua família às vezes passava a noite em um quarto apertado atrás da lavanderia de sua casa espaçosa, no bairro rico do Leblon, no Rio.

“Era tão pequeno que o quarto basicamente só cabia o colchão dela”, disse o Sr. Acosta, 34, um saxofonista profissional. “Mesmo quando criança, eu achava isso muito estranho.”

Depois que se mudou, o Sr. Acosta morou em uma série de aluguéis onde ele transformou os quartos da empregada em outra coisa. Em um apartamento, era um escritório. Em outro, um quarto de hóspedes pintado com cores vivas.

E quando ele se mudou para um novo apartamento, dois anos atrás, o quarto designado para a empregada media apenas 3,5 metros quadrados e não tinha janela, o que o horrorizou e tornou o cômodo perfeito para um estúdio de música à prova de som.

“É triste pensar que, antes disso, alguém dormia aqui”, disse ele.

A reforma foi mais do que apenas prática. Para o Sr. Acosta, que contrata um trabalhador para limpar sua casa uma vez por mês, reimaginar o quarto da empregada também carregava um significado simbólico. “Quando damos outros usos a ele, não estamos apenas mudando um apartamento”, ele disse, “estamos mudando as relações sociais também”.

Historiadores remontam o quarto da empregada aos alojamentos de escravos, conhecidos como senzalas em português, anexados à casa do dono dos escravos. O Brasil aboliu a escravidão em 1888, mais tarde do que qualquer outro país do Hemisfério Ocidental.

Mas muitas pessoas libertadas — sem condições financeiras — permaneceram nessas mesmas propriedades, servindo famílias que antes as escravizavam em troca de moradia, alimentação e um pequeno salário.

Quando a industrialização impulsionou uma onda de migração para as cidades, famílias ricas traduziram a ideia de alojamentos para empregados em um ambiente urbano: no Rio, amplos apartamentos de frente para o mar foram construídos nas décadas de 1930 e 1940, com quartos minúsculos e sem janelas para empregadas.

“Os quartos das empregadas são os alojamentos dos escravos modernos”, disse Joyce Fernandes, historiadora, rapper e escritora que ganhou fama após compartilhar suas próprias experiências como empregada doméstica de terceira geração.

No Brasil, onde a diferença entre ricos e pobres é maior do que em qualquer outro lugar da América do Sul, os quartos não foram questionados por décadas.

Quando a capital do país, Brasília, foi construída do zero no final da década de 1950, arquitetos renomados como Oscar Niemeyer projetaram edifícios com dependências de empregados, banheiros de empregadas e elevadores de serviço, consolidando desigualdades históricas em uma paisagem modernista.

Nas décadas de 1980 e 1990, novelas populares de televisão mostravam famílias brancas e ricas sendo servidas por empregadas, em sua maioria negras, que viviam em quartos escondidos dentro de mansões luxuosas. No início dos anos 2000, os programas infantis mais populares do Brasil mostravam empregadas que nunca saíam da cozinha.

“Até os pobres, que muitas vezes trabalhavam nessas funções, sonhavam em um dia ficar ricos e ter alguém para servi-los”, disse Joice Berth, urbanista e arquiteta.

Ainda assim, algumas pessoas, até mesmo empregadas domésticas, acreditam que ainda há espaço para um quarto de empregada.

Rosângela de Morais, 48 ​​anos, empregada doméstica na cidade brasileira de Salvador, começou a trabalhar como empregada doméstica quando tinha apenas 10 anos.

A Sra. Morais não mora mais nas casas onde trabalha. Mas, como os alojamentos das empregadas domésticas desaparecem, ela diz que as empregadas domésticas ficam sem lugar para trocar de uniforme, guardar pertences ou fazer uma pausa para o almoço.

Embora ela considere os quartos de empregada em sua forma tradicional desumanos, ela não acha que removê-los completamente seja a resposta. “Seria melhor manter este espaço, para termos um canto nosso”, ela disse. “Um quarto limpo e arejado com uma janela, onde você pode descansar com dignidade.”

Letícia Carvalho, 34 anos, advogada de Aracaju, emprega quatro empregadas domésticas, uma delas morando em sua casa.

“Ela não pode ir e voltar todos os dias”, disse a Sra. Carvalho.

Ainda assim, a Sra. Carvalho queria um tipo diferente de quarto de empregada. Ela o fez maior do que o normal, com uma janela grande, ar condicionado e um chuveiro quente. “Queríamos trazer um pouco mais de conforto para as pessoas que trabalham para nós”, ela disse.

Mesmo com o Brasil se afastando dos quartos de empregada, as divisões sociais persistem de outras maneiras. A maioria das casas ainda tem banheiros de serviço reservados para os trabalhadores. E a maioria dos edifícios tem entradas e elevadores separados para empregadas, babás, passeadores de cães e entregadores de comida, embora alguns também estejam se movendo para remover essas divisões.

Ainda assim, a Sra. Silva, a professora, vê o desaparecimento do quarto da empregada como evidência de que o Brasil está lidando com seu passado doloroso.

Quando a Sra. Silva deu a entrada em sua primeira casa este ano, ela ficou feliz em descobrir que não havia quarto de empregada.

“É libertador não ter essa história pesada”, ela disse. “Em vez disso, terei uma cozinha realmente grande.”

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