
Aquele jeito de conversar, enquanto arrastava a garrafa de café e oferecia um pedaço de
bolo. A maneira de prestar atenção, de se interessar por quem estivesse na sua frente. O
tanto em que acreditava que cada ser humano importa e muito. Desde o último sábado
(1), o mundo ficou menos interessante, menos justo. Menos atencioso. Paira sobre nós
um pouco menos de esperança de que conseguiremos.
Referência na luta pelos direitos e pela vida das trabalhadoras domésticas, a Luiza
Batista, a Dona Luiza, deixou este plano para seguir a sua viagem aos 69 anos de idade.
Grande parte deles dedicados a uma ideia que não arredava dos seus dias, das suas
palavras. Da sua luta: “Estará bom para todas as minhas irmãs”. Foi uma das primeiras
coisas que me disse, no dia em que nos conhecemos, anos atrás. A ONU e a presidência
da república lamentaram a sua passagem.
Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Brasil tem mais de 7 milhões de
trabalhadoras domésticas. Nenhum outro país tem mais. Seja como coordenadora Geral
da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), seja como presidenta
do CNTD (Conselho Nacional dos Trabalhadores Domésticos), era para essas milhões de
vidas desvalorizadas todos os dias, desrespeitadas
Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Brasil tem mais de 7 milhões de
trabalhadoras domésticas. Nenhum outro país tem mais. Seja como coordenadora Geral
da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), seja como presidenta
do CNTD (Conselho Nacional dos Trabalhadores Domésticos), era para essas milhões de
vidas desvalorizadas todos os dias, desrespeitadas todos os dias, que a Dona Luiza
seguia trabalhando incansavelmente. Todos os dias.
A primeira história contada por Ecoa foi a dela, sabia? Em outubro de 2019. Quem lutou
incansavelmente pela aprovação da chamada PEC das Domésticas – garantindo direitos
básicos como carga horária de 8 horas, FGTS e seguro-desemprego -, foi ela. Em 2013. Se
estivesse aqui, Luiza me corrigiria assim: “Ô, meu querido, eu te agradeço por dizer isso,
viu. Mas é como dizem, né; nenhuma de nós é mais importante que todas nós juntas.”
No perfil escrito pela também brilhante jornalista Débora Britto, aparece tudo isso aí. E
aparece mais. O começo de tudo na luta por moradia, no seu amado bairro de Peixinhos.
O ensino fundamental que conseguiu completar aos 50 anos, numa felicidade que só… –
“Com nove anos eu fui trabalhar numa residência, onde passei seis meses. A patroa era
muito intolerante, mesmo sendo professora. Eu não conhecia luz elétrica e, quando ela
me mandou acender a lâmpada e eu perguntei pelo ‘fosco’ – pois eu não sabia pronunciar
a palavra fósforo -, ela me chamou de burra, imbecil, idiota. Repetiu isso várias vezes, e
eu só olhava para ela e chorava”, contou na entrevista.
Isso foi seis décadas atrás, 60 anos. O que doía na Dona Luiza é que ela sabia que
histórias assim se repetiam enquanto ela dava entrevistas feito aquela. É por isso que
seus olhos se enchiam de água. Só perdiam para o coração, que transbordava coragem.
Diz um outro pedaço da entrevista:
“Em um dos lugares onde trabalhei já adulta, eu enfrentei um câncer de mama. Me tratei e
voltei a trabalhar. Certo dia, eu estava fazendo feijoada para a família da patroa e
disseram: ‘Luiza é como uma pessoa da família’. E eu respondi: ‘Espera aí! O que existe
aqui é respeito. A senhora paga os meus direitos direitinho, mas eu não sou da família.
Não me sento à mesa com vocês, não durmo na área social, não participo das decisões.
Não estou no plano de saúde nem no testamento. Então eu não sou da família’. Aí ela
disse que, depois do câncer, eu estava ficando atrevida.”.
Em nossa última conversa, Dona Luiza me contou que andava precisando de mais vida.
Que o mundo ainda tinha luta. Que entendia os recados do corpo, mas que os recados do
espírito eram maiores. Sopravam mais fortes. Se somos um país um tiquinho menos
desigual para quem saiu de casa hoje, às 4 da manhã, longe uma, duas horas do trabalho,
é porque a Luiza Batista passou por aqui.
É porque a Dona Luiza acreditou até os seus últimos dias que a vida é uma experiência
coletiva. Que viver é aquilo que acontece no interesse, na relação e no comprometimento
com quem atravessa os nossos caminhos. Algo parecido com aquela foto, que vira mexe
corre nas redes sociais nos momentos de aperto: “Quem tem apenas aspirações
individuais jamais entenderá uma luta coletiva”. E eu diria mais: que nunca vão entender a
Luiza Batista. E quem se move no mundo como ela, carregando a sua memória e o seu
legado.
O Brasil é um bem-sucedido projeto de esquecimento. Não na nossa vez. A Dona Luiza
existe.
Fonte: Uol Notícias