Por Juliana Macedo, Camile Mesquita, Maria Aparecida Chagas Ferreira, Cláudia Baddini e Natália Fontoura*
Fátima[1], 42 anos, residente em Feira de Santana, contraiu Covid-19 de sua patroa recém-chegada da Itália. Fátima retransmitiu o vírus para os seus pais, ambos idosos. Fátima não teve sintomas e seguia sendo monitorada pela Secretaria de Saúde de Feira de Santana. Lúcia[2], 63 anos, infelizmente não teve a mesma sorte de Fátima. Moradora de Miguel Pereira (RJ), Lúcia trabalhava no Leblon, onde a patroa, que também tinha estado na Itália, transmitiu o vírus para ela, que veio a falecer alguns dias depois do primeiro contato com sua patroa.
Fátima e Lúcia são empregadas domésticas e fazem parte de um grupo que se tornou de alto risco no Brasil durante a pandemia da Covid-19. As condições do trabalho doméstico na sociedade brasileira são reflexos do histórico que moldou as nossas relações sociais e reproduzem até hoje uma realidade não mais encontrada em países desenvolvidos, de trabalhadores mal remunerados. O trabalho doméstico é composto em sua maioria por mulheres, negras, com precária cobertura de proteção social, remuneração média abaixo do salário mínimo e com jornada de trabalho exaustiva, acumulada entre casa e trabalho.
Assim, o coronavírus não atingirá a todos da mesma maneira. A exposição ao risco de contaminação evidencia as situações de vulnerabilidades sociais com as quais milhões de pessoas convivem diariamente. Muitos desses milhões de vulneráveis – as trabalhadoras domésticas remuneradas – frequentam nossas casas diariamente e estarão entre aqueles que vivenciarão a crise atual com mais dificuldade e precisarão ser mais apoiados pelo poder público e pela sociedade.
Quem são as trabalhadoras domésticas remuneradas no Brasil?
O Brasil possui 6,2 milhões de pessoas ocupadas no serviço doméstico, dessas 92% são mulheres e 68% negras o que sugere que gênero e raça jogam um papel determinante nessas relações. São mulheres, em sua maioria mães de família, cozinhando, limpando, lavando, passando, servindo as casas. Mulheres negras e moradoras da periferia que têm como única opção de sobrevivência vender a sua força de trabalho como domésticas.
O trabalho doméstico é fortemente marcado pela informalidade. Os dados[3] apontam que 4,4 milhões (71,4%) de trabalhadores domésticos não possuem carteira assinada, porta de entrada para diversos direitos trabalhistas, sendo descobertas de uma ampla proteção social. O regime de trabalho, se mensalista ou diarista, tem importante influência no acesso à proteção social. A legislação reconhece a existência de vínculo empregatício quando a empregada doméstica trabalha na mesma casa por mais de dois dias na semana, o que leva a uma situação ainda mais precária para as diaristas. Estas representam 2,5 milhões de trabalhadoras, sendo que apenas 9,5% desse grupo apresentava contribuição à Previdência Social como autônomas ou Microempreendedoras Individuais (MEI). Isso não significa formalização completa, pois a volatilidade de renda gera inconstância nas contribuições, o que tende a ter se agravado no cenário atual, aumentando ainda mais a situação de informalidade dessas mulheres.
O nível salarial das empregadas domésticas também é bem diferenciado de acordo com o regime de trabalho e sua condição ou não de formalização. Enquanto as trabalhadoras formalizadas recebiam salários mensais médios de R$ 1,2 mil, aquelas que se encontravam na informalidade recebiam somente R$ 684, sendo que as mensalistas possuem rendimento médio de R$ 956 frente ao rendimento médio de R$ 773 das diaristas.
Outro aspecto dramático observado entre essas trabalhadoras é que elas acumulam o trabalho doméstico remunerado com o trabalho doméstico não remunerado, totalizando 52 horas semanais de trabalho doméstico. São duas jornadas do mesmo trabalho, que se refletem na exaustão física e emocional. O tempo dedicado aos afazeres domésticos, quer seja para o seu domicílio, para a sua família ou para seus empregadores, leva a que pouco ou nenhum tempo reste disponível para cuidados pessoais e para lazer. São condições de trabalho que se juntam ao precário acesso a serviços de saúde e de habitação. São moradoras das periferias brasileiras em comunidades pobres, menos favorecidas e com uma limitada urbanização.
O papel do Estado e da sociedade civil no binômio pandemia-trabalhadoras domésticas
Temos acompanhado pela mídia a manutenção das atividades das trabalhadoras domésticas durante a pandemia, apesar da determinação do isolamento social para toda a população. Os empregadores, às voltas com o acúmulo de atividades relacionadas ao trabalho e os cuidados com os filhos, confrontam as trabalhadoras para que continuem exercendo suas funções. Em outros casos, exatamente por estarem em casa, os empregadores dispensam a trabalhadora, muitas vezes sem a garantia da remuneração. Essa situação tende a ser ainda mais comum no grupo das diaristas, uma vez que não há vínculo empregatício.
Diante desse quadro, vemos instituições do Estado e da sociedade civil se mobilizando para reduzir o impacto da pandemia de Covid-19 sobre a pobreza. O Ministério Público do Trabalho recomendou que a “pessoa que realiza trabalho doméstico seja dispensada do comparecimento ao local de trabalho, com remuneração assegurada, no período em que vigorarem as medidas de contenção da pandemia do coronavírus, excetuando-se apenas as hipóteses em que a prestação de seus serviços seja absolutamente indispensável, como no caso de pessoas cuidadoras de idosas e idosos que residam sozinhos, de pessoas que necessitem de acompanhamento permanente, bem como no caso de pessoas que prestem serviços de cuidado a pessoas dependentes de trabalhadoras e trabalhadores de atividades consideradas essenciais nesse período”.
As organizações sindicais das trabalhadoras domésticas têm se manifestado com preocupação crescente pela situação de vulnerabilidade que enfrenta quem trabalha no setor de cuidados e, em particular, as trabalhadoras domésticas. Em conjunto apelam para que prevaleça o bom senso e a empatia, com acordo entre as partes, considerando a importância dessa renda para as trabalhadoras e a necessidade de isolamento pela possibilidade de contaminação, de forma que haja continuidade no pagamento dos salários.
Em carta manifesto, os filhos de trabalhadoras domésticas ressaltam a emergência do cumprimento da quarentena e a necessidade da dispensa remunerada das mães para que cumpram as exigências de precaução no combate à propagação contagiosa do Covid-19. Além da dispensa imediata, reivindicam ainda o adiantamento das férias em sua totalidade ou de forma parcial.
Nesse contexto, o exercício da solidariedade e da responsabilidade social precisa ser vivenciado. De uma forma ou de outra, todos somos atingidos por essa grande tragédia. No entanto, é nos estratos mais precários que as consequências desse momento podem soar como uma sentença de morte, pelo vírus ou pela falta de recursos econômicos disponíveis para bancar a sobrevivência. Se temos o privilégio de ficar em casa protegidos, é necessário que possamos estender essa mesma oportunidade para as trabalhadoras domésticas, com a devida remuneração para o enfrentamento desse momento.
O que se vê é um chamado à responsabilidade para a saúde pública e a proteção das pessoas mais vulneráveis social e economicamente. O quadro de desigualdade social, que sempre esteve presente e que em situações de crises se agrava, no momento atual expõe a saúde das trabalhadoras domésticas e, por conseguinte, da comunidade a qual pertencem, além do risco de maiores dificuldades econômicas e de insegurança alimentar de suas famílias.
Saídas viáveis?
A renda básica emergencial significará um auxílio no valor de R$ 600,00 mensal por um período de 3 meses. Embora o valor não corresponda nem mesmo a um salário mínimo, é uma medida importante para mitigar os efeitos econômicos da pandemia da Covid-19 e garantir alguma condição aos trabalhadores informais, entre eles, mais de 4 milhões de trabalhadoras domésticas.
Têm direito aqueles com mais de 18 anos, cuja família tenha renda mensal per capita de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135), desde que tenham rendimentos tributáveis, em 2018, abaixo de R$ 28.559,70 e não tenha emprego formal ativo, ou seja, contrato de trabalho formalizado nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) nem seja agente público. O benefício poderá ser recebido por até dois integrantes da mesma família e no caso de famílias monoparentais, estas podem receber os dois benefícios (R$ 1.200). A estrutura do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e o Programa Bolsa Família, duas políticas públicas de grande envergadura, terão papel central nesse processo.
Ainda, existe a possibilidade de tramitação de Projetos de Lei específicos para garantir direitos a empregadas domésticas durante a pandemia de coronavírus (PL 931/2020 e PL 993/2020), que podem qualificar o debate sobre a temática e devem ser acompanhados de perto. As propostas, além da estabilidade no emprego e do afastamento obrigatório remunerado, estabelecem um pagamento adicional a título de periculosidade e insalubridade. A proposta também retoma o desconto das contribuições previdenciárias na declaração de imposto de renda de pessoa física, desde que seja cumprido o afastamento remunerado obrigatório, que deve trazer uma série de discussões sobre sua comprovação.
Entretanto, segundo relato de pesquisa realizada entre os dias 14 e 15 de abril, a ser publicada, 23% dos empregadores de diaristas e 39% dos patrões de mensalistas afirmaram que suas funcionárias continuam trabalhando normalmente, desde o início da pandemia. Por outro lado, 39% dos empregadores de diaristas e 48% dos patrões de mensalistas teriam declarado que mantiveram normalmente o pagamento das funcionárias, que cumprem o distanciamento social necessário. Chama ainda atenção que entre os empregadores da classe C, 40% informaram estarem praticando a dispensa remunerada, frente a 36% das classes A e B, ou seja, parece que a continuidade na remuneração das trabalhadoras não está associada simplesmente a condições econômicas dos empregadores nesse momento.
Ainda, entre aqueles que estão cumprindo o distanciamento social com manutenção da remuneração caberia saber quais desses estão se respaldando pela Medida Provisória 936, que possibilita a redução de jornada e suspensão do contrato de trabalho, transferindo ao Estado a cobertura dos valores, que não necessariamente serão os mesmos da remuneração anterior, uma vez que se utiliza o valor proporcional de seguro desemprego como referência.
A situação atual da pandemia vem evidenciando todas as mazelas de desigualdades e classismos do país, incluindo as de gênero, já documentadas em inúmeras pesquisas. No caso específico das trabalhadoras domésticas, para além das medidas ‘econômicas e trabalhistas’ que vem surgindo, nenhuma delas relacionadas diretamente a esse perfil de trabalho, parece que a garantia do distanciamento social, com todas as implicações que significam para as moradoras da periferia, sem prejuízo do seu salário, é a opção mais sensata e solidária, premissa da justificativa do distanciamento, seja para aquelas empregadas com carteira assinada como para as que se encontram em situação de informalidade (mensalistas e diaristas) em nome de um sentido comum de coletividade e cidadania.
Transcrição do Texto publicado pela Anesp**
[1] Nome fictício. Não houve divulgação do nome da vítima
[2] Nome fictício. Não houve divulgação do nome das vítimas.
[3] Fonte: Texto para Discussão
*Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental
**Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) é uma entidade de direito privado,
com personalidade jurídica própria, sem fins lucrativos, que congrega membros da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG).