Publicado no dia 28 de março de 2023
Um dos nomes mais importantes na luta pelas conquistas dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, Nair Jane, 91 anos, concedeu entrevista à Folha de São Paulo, nesta terça-feira (27), sobre os 10 anos da ‘PEC das Domésticas’. Negra, nordestina e aposentada, a sindicalista começou a trabalhar como babá aos nove anos e ajudou a organizar a categoria no Rio de Janeiro.
Confira a matéria:
Nair Jane de Castro Lima, 90, costuma comparar a trajetória das trabalhadoras domésticas no Brasil, em sua busca por direitos iguais, a uma colcha de retalhos -a PEC das Domésticas, que completa dez anos neste 2 de abril, seria um dos pedaços mais recentes dessa história costurada por diversas mãos e com muita luta.
Mulher, negra e nordestina, ela tem uma história que remete à de diversas outras brasileiras que veem no trabalho doméstico a única chance de sobrevivência.
Nascida no interior do Maranhão, ela começou a atuar como babá aos nove anos. Foi cuidando de filhos de outras famílias no Rio de Janeiro que ela entendeu como trabalhadora e foi buscar direitos iguais presidindo associações e ajudando a organizar uma base.
Mais tarde, essa experiência a faria ter papel fundamental na mobilização das trabalhadoras domésticas durante a elaboração da Constituição de 1988.
Nair Jane também colaborou com a construção da CUT (Central Única dos Trabalhadores), ajudou a fundar a Confederação Latino-Americana e do Caribe das Trabalhadoras Domésticas e o sindicato da categoria na Baixada Fluminense.
Sua trajetória foi contada no documentário “Eu Sou Nair Jane – A Luta das Trabalhadoras Domésticas”, produzido pelo Cedim/RJ (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro), e no minidoc “Colcha de Retalhos”, do CPDOC da FGV (Fundação Getulio Vargas) -este disponível no YouTube.
Em depoimento à Folha de S.Paulo, ela se diz orgulhosa dos direitos conquistados pela categoria no Brasil e do papel que desempenhou nessa mudança.
Nasci em uma época em que o racismo era ainda mais forte e essa questão do trabalho análogo à escravidão nem era discutida. Saí de Imperatriz, no Maranhão, e logo comecei a atuar como babá. Foram 11 anos trabalhando em troca de casa e comida.
É curioso, tinha carinho por essa primeira família de patrões. Almoçava e jantava na mesa com eles e, apesar de tudo, podia estudar. Era tão novinha, que não entendia muito bem o conceito de trabalho doméstico, não tinha salário, mas achava que era parte daquela casa.
Quando fui trabalhar para outra família, já me enxergava como trabalhadora, me sentia parte da categoria das domésticas. Fui tomando consciência de quem eu era, dos direitos que não tinha e do que poderia fazer para melhorar a nossa situação. Já entendia que não dava para dizer que aquela casa era minha, mas apenas o lugar de onde tirava o meu sustento.
Como era babá e não fazia outro serviço além de cuidar da criança, tinha mais tempo disponível e usava esse tempo para pesquisar sobre direitos trabalhistas. A minha luta começou quando entramos para a JOC (Juventude Operária Católica).
Com o tempo, fundamos nossas associações, fui presidente da Associação Profissional de Trabalhadores Domésticos do Estado do Rio de Janeiro e também ajudamos a fundar a CUT.
Era emocionante ver outras meninas, que antes se viam como parte da mobília, começando a se enxergar como trabalhadoras.
A luta durante a Constituinte começou um pouco no Rio e um pouco em Brasília. A gente enfrentou o Ulysses Guimarães e a turma dele. Eu não era líder daquele movimento, mas tinha sempre um constituinte que batia no meu ombro e me chamava para conversar.
Nos chamavam de ‘formiguinhas’. As domésticas encheram Brasília, quem não tinha onde ficar dormia em pedaços de papelão, em uma cama improvisada de uma creche, algumas ficaram na casa da Benedita da Silva.
Não conseguimos a equiparação dos direitos das domésticas, mas deixamos a nossa marca na luta pelos direitos das mulheres, que daria frutos nos anos seguintes. O importante é que a gente estava lá.
Quando o presidente Lula foi eleito pela primeira vez, em 2003, começamos a mandar cartas para Brasília, perguntando quando iriam equiparar as férias das trabalhadoras domésticas, e conseguimos.
A cada nova vitória, a gente sempre se perguntava: ‘e agora? também queremos FGTS, seguro-desemprego, salário-família’.
A nossa luta é uma colcha de retalhos, não veio tudo de uma só vez e cada pedaço de tecido é fruto de muita luta. A PEC das Domésticas e a lei complementar nos ajudaram bastante, mas nem tudo está resolvido, queremos igualdade no seguro-desemprego e a trabalhadora doméstica continua sem acesso à creche, lutando para ter onde deixar os filhos com segurança e poder trabalhar em paz.
Eu poderia dizer que tenho esperanças boas com a volta do Lula, só que o presidente não resolve tudo sozinho. Temos de continuar pensando em como agir.
No último dia 20 de março, fui homenageada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro com a Medalha Chiquinha Gonzaga, o que me deixou muito orgulhosa e feliz de ser lembrada ainda em vida. Mas acho que esse não é um ponto final, ainda tenho muito a fazer.