Publicado no dia 26 de maio de 2020
A presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista e a doutora em Direito Público, Liana Cirne Lins escreveram um artigo ‘Guia para patroa feminista’, divulgado no site Mídia Ninja, neste domingo (24).
Leia o artigo na íntegra:
Guia para patroa feminista
Por Liana Cirne Lins e Luíza Batista
Até onde vai seu feminismo? Ele fica circunscrito a suas amigas, iguais a você?
Há algum tempo, feministas vem ensinando e denunciando que o feminismo das mulheres brancas é marcado por uma evasão de responsabilidade e pelo não comprometimento com a mudança, justamente para as mulheres que sofrem mais e maiores camadas de violência e opressão, em especial o racismo.
O feminismo negro foi responsável por evidenciar tais disparidades dentro do próprio feminismo, antes tido como universal, à custa da exclusão de marcadores raciais e de classe que extremizam e diferenciam as violências de gênero.
Há muito tempo a luta feminista se debruça sobre as violências decorrentes da injustiça e iniquidade no ambiente de trabalho, tais como desigualdade salarial, improbabilidade de promoção, manterrupting (homem interromper a mulher), mansplaining (homem ficar explicando o que a mulher disse, como se ela fosse incapaz de se expressar), bropriation (homem se apropriar de ideias de mulheres que não foram valorizadas quando expostas por mulher) e, obviamente, assédio sexual no ambiente de trabalho.
E embora todas essas terríveis violências continuem atuais e continuem necessitando sistemática denúncia e repúdio, observa-se que pouco se fala sobre uma das categorias profissionais mais violentadas e exploradas, exercida predominantemente por mulheres: a trabalhadora doméstica.
Estima-se que o Brasil possua mais de 7 milhões de trabalhadoras domésticas, das quais 82% são negras. Em razão do grande número de contratos que permanecem na informalidade e ilegalidade, esse número pode ser muito maior.
Estamos falando das mulheres trabalhadoras que disputam as posições mais economicamente precárias da sociedade e que, em razão de ser uma profissão quase exclusivamente exercida por mulheres, sequer é possível comparar a desigualdade salarial entre gêneros: essas trabalhadoras já têm sua remuneração no mínimo.
Somam-se a essa todas as outras violências antes citadas, com ênfase para o assédio sexual, quando não estupro, cujos índices são muito maiores do que em qualquer outra profissão, vexatória e repugnantemente romanceadas em histórias de iniciação sexual dos “patrõezinhos”.
Indagamos: em todas as matérias que lemos em revistas sobre discriminação sexual no trabalho, quantas continham fotos, relatos ou depoimentos de domésticas? Elas não ilustram a capa ou as páginas internas das revistas femininas ou semanais. E isso talvez explique o motivo pelo qual associamos imagens de executivas de terninhos ou elegantes vestidos quando o debate é a igualdade de gênero no trabalho.
Mas o fato é que, com todas as violências e injustiças de gênero que mulheres executivas sofrem – e elas sofrem – isso muitas vezes não as faz ter empatia com outras mulheres em situação de desigualdade, mesmo que, literalmente, essa violência ocorra dentro de suas casas.
Não à toa a primeira queixa denunciada pelas domésticas ao buscarem a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas é a violência moral e o assédio.
Maus tratos, agressões verbais, ofensas morais, não são raros. Trabalhadoras comumente relatam que suas patroas “descontam” nelas suas frustrações conjugais, maternais e profissionais.
O fato de o ambiente de trabalho ser a própria residência da empregadora também contribui para que o excesso de informalidade das relações de trabalho descambe para a confusão e mascare obrigações e direitos trabalhistas.
Não é raro ouvir que a empregada “é da família”. Porém, muito embora possa haver afeto envolvido em diversos níveis, seja de mãe suplementar, seja de conselheira ou amiga, que uma possa prestar à outra, essa suposta relação familiar entre patroa e empregada, quando desacompanhada de direitos e deveres bem determinados, pode servir para fragilizar ainda mais a posição da trabalhadora. Uma dica prática pode ajudar a evitar confusões: a empregada está incluída no testamento? Se não estiver, é porque não “é da família”. É uma trabalhadora e como tal deve ser tratada e respeitada.
Por isso, estabelecer regras jurídicas e também comportamentais pode ajudar aquela patroa que, ao ler esse texto, reconheceu alguns de seus maus comportamentos, e quer mudar para melhor.
Comece fazendo analogias: você se comportaria assim com, por exemplo, uma designer que estivesse trabalhando em sua residência? Quais seriam as normas de convivência e da boa educação que seriam utilizadas? Naturalmente, não estamos sugerindo que a coloquialidade e informalidade do ambiente doméstico sejam substituídas pelo formalismo. Mas que eventuais grosserias e gritos sejam substituídos pela educação, pelo respeito e pelo bom senso. Reclamações e advertências sempre vão existir (dos dois lados) num contrato de trabalho alongado, mas podem e devem ser feitas de modo respeitoso, como em qualquer ambiente de trabalho saudável.
Alguns vícios de linguagem também podem e devem ser corrigidos: que tal não mais falar em “minha empregada”? Esse pronome possessivo oriundo de nossa tradição escravocrata não vai nos ajudar na tarefa de estabelecer uma conduta de respeito recíproco.
Mas para ser uma patroa feminista também é necessária sensibilidade. E chega a hora de falar desta parte sensível do corpo humano, chamada bolso: o contrato de trabalho tem que ser formalizado, com registro da carteira de trabalho e direitos correlatos. Aliás, fizemos um resumo no final do texto, para ajudar você que quer começar a fazer as coisas direito.
Mas tem mais: você já se indagou se o salário que você pode pagar é o mínimo? Antes de encher os armários de roupas de grife e novos pares de sapatos desnecessários, refaça essa pergunta: o que é possível pagar é o mínimo e nada além do mínimo? Se você tiver condições financeiras, valorize a profissional que cuida da sua casa.
Não custa lembrar que não valorizar o salário da trabalhadora doméstica é uma forma de desvalorizar uma pauta nossa, relativa à divisão sexual do trabalho e exploração do trabalho da mulher.
Não choca que nessa quarentena muitos homens tenham finalmente reconhecido que, sem as empregadas domésticas, sua produtividade ficou quase reduzida a zero. Do mesmo modo como não choca que a divisão sexual do trabalho estabeleça que, no caso do trabalho doméstico, as relações entre empregadora e empregada seja quase sempre uma relação de dois termos femininos.
E pra quem chegou até aqui e quer ter a certeza de que está respeitando os direitos da trabalhadora doméstica, mas está com dificuldades de entender ao certo suas obrigações como empregadora, seguem essas orientações:
• Registrar a carteira de trabalho e previdência social (CTPS) em até 48 horas após o início do trabalho de fato. Esse é o primeiro e mais importante dos direitos.
• Se você quiser fazer um contrato de experiência, deve igualmente registrar a CTPS. Nesse caso, registre no campo de observações que o contrato é de experiência, assinalando o prazo. O contrato de experiência pode ser renovado uma vez e pode ter a duração total de 90 dias.
• Tratamento respeitoso: não gritar, não humilhar, não ofender. Se for o caso de alguma advertência, o faça de modo claro e educado. Cometer um erro não justifica nenhuma humilhação.
• 30 dias de férias remuneradas, com adicional de ⅓
• Décimo terceiro salário
• Jornada de trabalho de 44 horas semanais e 8 horas diárias
• Folga semanal (atenção: folga quinzenal ou mensal pode ser considerado trabalho análogo à escravidão)
• Folga nos feriados
• FGTS
• Licença maternidade
• Salário família (para trabalhadora de baixa renda com filho de até 14 anos)
• Adicional noturno de 20% sobre o valor da hora
A FENATRAD também está lutando para que o trabalho doméstico não seja declarado essencial na quarentena, exceto em situações excepcionais em que seja de fato indispensável (por exemplo, a babá na casa de família onde pai e mãe sejam profissionais da saúde, etc). Afinal, o isolamento não é um privilégio. É um direito.
A empregadora pode se valer da MP 936/2020 para suspender o contrato de trabalho durante a quarentena, quando a carteira de trabalho já estiver assinada. Nesse caso, o acordo pode ser feito por whatsapp, evitando exposição da trabalhadora no transporte coletivo. No site do Programa Emergencial do governo, a empregadora tem até 10 dias para comunicar o acordo, acessar o Portal de Serviços e seguir o passo a passo. Durante a suspensão do contrato, que pode durar até 60 dias, a trabalhadora receberá o valor do seguro-desemprego. Se o salário for superior ao mínimo, a empregadora poderá complementá-lo, chegando a um valor justo.
E da próxima vez que você disser que o feminismo começa na sua casa, você estará se referindo a você mesma, ao companheiro ou companheira, filhos e filhas, e também à trabalhadora doméstica que você contrata, e que trata com a mesma justiça que quer ver para si.